08 maio 2009

Semana das mães

A CARTA

A velha dobrou as pernas como se dobrasse os séculos. Ela sofria doença
do chão, mais e de mais se deixando nos caídos. Amparava-se em poeiras,
seria para se acostumar à cova, na subfície do mundo?
- Me leia a carta. Me entregava o papel amarrotado, dobrado em mil
sujidades. Era a Carta de seu filho, Ele partira de
farda, cabelo no zero. A carta, ele a enviara havia anos.
Sempre era a mesma, já eu a conhecia de memória,
letra por letra.
- Outra vez, mamãe?
- Sim, maistravez.
Sentei o papel sob os olhos, fingi acarinhar o desenho das letras. Quase
nem se viam, suadas que estavam. Dormiam sob o lenço de mamãe, desde
que chegara a guerra. Essas letras cheiram a pólvora, me angustiam
o coração. Era o dito da velha mãe. Agora, passados os tempos, aquele papel
era a única prova do seu Pedro. Parecia que só pelo escrito,
sempre mais desbotado, seu filho estava presente. Nas
primeiras vezes eu até fazia à leitura, traduzindo a
autêntica versão do pequeno soldado. Eram letras incertinhas,
pareciam crianças saindo da formatura. Juntavam-se ali mais erros que
palavras. O recheio nem era maior que o formato. Porque naquela escrita
não havia nem linha de ternura. O soldado aprendera a guerra
desaprendendo o amor??? Em Pedro, morrera o filho para nascer o
guerreiro? Nas primeiras leituras, meu coração muito se apertava em
inventadas dedicatórias aquela mãe. Enquanto lia, eu espreitava o
rosto da idosa senhora, tentando escutar uma ruga de tristeza.
Nada. A velha mãe se imovia, como se tivesse saudade da morte. Seus
olhos não mencionavam nenhuma dor. Eu tentava um alivio, desculpar o
menino que não pôde resistir à farda. Nem se entristeça, mamãe,
Também, da maneira como carregaram esse menino para a tropa!
Sem camisa, sem mala, sem notícia. Atirado para os fundos do camião como
se faz às encomendas sem endereço.
- Entenda, mamãe.
Mas ela já dormia, deitada em antiquíssima sombra. Ou mentia que Dormia,
debruçada na varanda da alma? Fingia, a velha mãe. Como o rio, num açude, se
disfarça de lagoa. Depois, ela regressava às pálpebras, me apressava.
- Continua. Por que paraste?
Já não restava nada que ler. Era só o gorduroso papel e uma despedida Sem
nenhum beijo. Pode a carta de um saudoso filho terminar assim: "unidade,
trabalho, vigilancia"? Mas a velha mãe insistia com firmeza. Eu que lesse,
toda a gente sabe, as letras igualam as estrelas mesmo poucas são
infinitas. Eu que lhe fosse paciente, pobre mãe, sem nenhuma escola. Foi
então que passei a alongar aquela carta, amolecendo as reais
palavras. Inventava. Em cada leitura, uma nova carta surgia da
velha missiva. E o Pedro, em minha imaginação, ganhava os
infindos modos de ser filho, homem com méritos para permanecer
menino. Mamãe escutava num embalo, houvessem em minha voz ondas
de um sepultado mar. Ela embarcava de visita a seu filho, tudo se
passando na bondade de uma mentira.
Até que um dia, me trouxeram notícia. Pedro perdera, para
sempre, a existencia. Ele morrera em incógnitos matos,
vitima dos bandos. A mãe nem suspeitava.
Fiquei eu atribuido de lhe entregar a triste
notícia. Esperei. Nesse fim de tardinha, porém, mamãe não
compareceu em minha casa. Assustei-me. Adivinhara ela o destino do
Pedro? Quem conhece os poderes de uma mãe em exercicio de
saudade? Decidi ir ao seu encontro. Parti, ainda restavam manchas do poente.
mamãe cozinhava uns míseros grãos, comia como um passarinho.
- Senta, meu filho, fica servido, não custa dividir pobrezas.
Fui ficando, me compondo de coragem. Como podia eu causar aquele
luto? Comemos. Melhor fingimos comer. Faz conta é uma refeição,
meu filho. Faz conta. Modo que eu vivo, fazendo de conta.
- E agora, diz por que vieste na minha casa?
Olhei o chão, o mundo escapava pelo fundo. Ela venceu o silêncio.
- Me vens ler o meu filho?
Acenei que sim. Aceitei o velho papel mas demorei a começar. Eu queria
acertar os meus gestos, evitando demonstrar alguma tremura.
Finalmente, atravessei a escrita, ao avesso da verdade. Trouxe as
novas do filho, seus consecutivos heroísmos. Ele, o mais bravo,
mais bondoso, mais único. Como sempre, a mãe escutou em
qualificado silêncio. Às vezes, no colorir de um parágrafo, ela
sorria sempre igual, esse meu filho. Eu me parabenizava, cumprida a
missão do fingimento. Me despedi, quase em alívio. Foi então, em
derradeiro relance, que eu vi a velha mãe lançando a carta sobre a
fogueira. Ao meu virar ela disfarçou o gesto. O papel demorou um
instante a ser mastigado pelo fogo. Nesse brevíssimo segundo, eu anotei
a lágrima pingando sobre a esteira. Ela fingiu tirar algo do rosto,
fingiu que metia a carta sob o lenço. Me voltei a despedir, fazendo
de conta que aquele adeus era igual a todos que já lhe dera.

0 comentários:

Postar um comentário

ÍNDICE - MARCADORES

 

Os comentários feitos por visitantes, não são de responsabilidade do autor, Use o conteúdo deste "blog" livremente, O direito autoral é do Céu. Lembre-se, naturalmente, de citar a fonte. Copyright 2009 All Rights Reserved. Site desenvolvido e mantido por Diego Dlins

Clicky Web Analytics BlogBlogs.Com.Br diHITT - Notícias