09 março 2009

O Justo e a Justiça

Olá, amigos, vejam só o que o "nosso" Rui Barbosa, renomado jurista e
senador da república, entre outras funções que desempenhou, todas com
inegável competência, escreveu sôbre o julgamento de Jesus Cristo.
Aliás, sôbre este assunto, estarei postando, nos próximos dias, um
estudo bastante detalhado, aguardem!!!



O JUSTO E A JUSTIÇA


Para os que vivemos a pregar à república o culto da justiça como o supremo elemento preservativo do regímen, a história da paixão, que hoje se consuma, é como que
a interferência do testemunho de Deus no nosso curso de educação constitucional. O quadro da ruína moral daquele mundo parece condensar-se no espetáculo da sua justiça,
degenerada, invadida pela política, joguete da multidão, escrava de César. Por seis julgamentos passou Cristo, três às mãos dos judeus, três às dos romanos, e em
nenhum teve um juiz. Aos olhos dos seus julgadores refulgiu sucessivamente a inocência divina, e nenhum ousou estender-lhe a proteção da toga. Não há tribunais,
que bastem, para abrigar o direito, quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados.
Grande era, entretanto, nas tradições hebraicas, a noção da divindade do papel da magistratura. Ensinavam elas que uma sentença contrária à verdade afastava do seio
de Israel a presença do Senhor, mas que, sentenciando com inteireza, quando fosse apenas por uma hora, obrava o juiz como se criasse o universo, porquanto era na
função de julgar que tinha a sua habitação entre os israelitas a majestade divina. Tão pouco valem, porém, leis e livros sagrados, quando o homem lhes perde o sentimento,
que exatamente no processo do justo por excelência, daquele em cuja memória todas as gerações até hoje adoram por excelência o justo, não houve no código de Israel
norma, que escapasse à prevaricação dos seus magistrados.
No julgamento instituído contra Jesus, desde a prisão, uma hora talvez antes da meia-noite de quinta-feira, tudo quanto se fez até ao primeiro alvorecer da sexta-feira
subseqüente, foi tumultuário, extrajudicial, a atentatório dos preceitos hebraicos. A terceira fase, a inquirição perante o sinedrim, foi o primeiro simulacro de
forma judicial, o primeiro ato judicatório, que apresentou alguma aparência de legalidade, porque ao menos se praticou de dia. Desde então, por um exemplo que desafia
a eternidade, recebeu a maior das consagrações o dogma jurídico, tão facilmente violado pelos despotismos, que faz da santidade das formas a garantia essencial da
santidade do direito.
O próprio Cristo delas não quis prescindir. Sem autoridade judicial o interroga Anás, transgredindo as regras assim na competência, como na maneira de inquirir;
e a resignação de Jesus ao martírio não se resigna a justificar-se fora da lei: "Tenho falado publicamente ao mundo. Sempre ensinei na sinagoga e no templo, a que
afluem todos os judeus, e nunca disse nada às ocultas. Por que me interrogas? Inquire dos que ouviam o que lhes falei: esses sabem o que eu lhes houver dito". Era
apelo às instituições hebraicas, que não admitiam tribunais singulares, nem testemunhas singulares. O acusado tinha jus ao julgamento coletivo, e sem pluralidade
nos depoimentos criminadores não poderia haver condenação. O apostolado de Jesus era ao povo. Se a sua prédica incorria em crime, deviam pulular os testemunhos diretos.
Esse era o terreno jurídico. Mas, porque o filho de Deus chamou a ele os seus juízes, logo o esbofetearam. Era insolência responder assim ao pontífice. Sic respondes
pontifici? Sim, revidou Cristo, firmando-se no ponto de vista legal: "se mal falei, traze o testemunho do mal; se bem, por que me bates?"
Anás, desorientado, remete o preso a Caifás. Este era o sumo sacerdote do ano. Mas, ainda assim, não não tinha a jurisdição, que era privativa do conselho supremo.
Perante este já muito antes descobrira o genro de Anás a sua perversidade política, aconselhando a morte a Jesus, para salvar a nação. Cabe-lhe agora levar a efeito
a sua própria malignidade, "cujo resultado foi a perdição do povo, que ele figurava salvar, e a salvação do mundo, em que jamais pensou".
A ilegalidade do julgamento noturno, que o direito judaico não admitia nem nos litígios civis, agrava-se então com o escândalo das testemunhas falsas, aliciadas
pelo próprio juiz, que, na jurisprudência daquele povo, era especialmente instituído como o primeiro protetor do réu. Mas, por mais falsos testemunhos que promovessem,
lhe não acharam a culpa, que buscavam. Jesus calava. Jesus autem tacebat. Vão perder os juízes prevaricadores a segunda partida, quando a astúcia do sumo sacerdote
lhes sugere o meio de abrir os lábios divinos do acusado. Adjura-o Caifás em nome de Deus vivo, a cuja invocação o filho não podia resistir. E diante da verdade,
provocada, intimada, obrigada a se confessar, aquele, que a não renegara, vê-se declarar culpado de crime capital: Reus est mortis. "Blasfemou! Que necessidade temos
de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia". Ao que clamaram os circunstantes: "É réu de morte".
Repontava a manhã, quando a sua primeira claridade se congrega o sinedrim. Era o plenário que se ia celebrar. Reunira-se o conselho inteiro. In universo concilio,
diz Marcos. Deste modo se dava a primeira satisfação às garantias judiciais. Com o raiar do dia se observava a condição da publicidade. Com a deliberação da assembléia
judicial, o requisito da competência. Era essa a ocasião jurídica. Esses eram os juízes legais. Mas juízes, que tinham comprado testemunhas contra o réu, não podiam
representar senão uma infame hipocrisia da justiça. Estavam mancomunados, para condenar, deixando ao mundo o exemplo, tantas vezes depois imitado até hoje, desses
tribunais, que se conchavam de véspera nas trevas, para simular mais tarde, na assentada pública, a figura oficial do julgamento.
Saía Cristo, pois, naturalmente condenado pela terceira vez. Mas o sinedrim não tinha o jus sanguinis, não podia pronunciar a pena de morte. Era uma espécie de júri,
cujo veredictum, porém, antes opinião jurídica do que julgado, não obrigava os juízes romanos. Pilatos estava, portanto, de mãos livres, para condenar, ou absolver.
"Que acusação trazeis contra este homem?" Assim fala por sua boca a justiça do povo, cuja sabedoria jurídica ainda hoje rege a terra civilizada. "Se não fosse um
malfeitor, não to teríamos trazido", foi a insolente resposta dos algozes togados. Pilatos, não querendo ser executor num processo, de que não conhecera, pretende
evitar a dificuldade, entregando-lhes a vítima: "Tomai-o, e julgai-o segundo a vossa lei". Mas, replicam os judeus, bem sabes que "nos não é lícito dar a morte a
ninguém". O fim é a morte, e sem a morte não se contenta a depravada justiça dos perseguidores.
Aqui já o libelo se trocou. Não é mais de blasfêmia contra a lei sagrada que se trata, senão de atentado contra a lei política. Jesus já não é o impostor que se
inculca filho de Deus: é o conspirador, que se coroa rei da Judéia. A resposta de Cristo frustra ainda uma vez, porém, a manha dos caluniadores. Seu reino não era
deste mundo. Não ameaçava, pois, a segurança das instituições nacionais, nem a estabilidade da conquista romana. "Ao mundo vim", diz ele, "para dar testemunho da
verdade. Todo aquele que for da verdade, há de escutar a minha voz". A verdade? Mas "que é a verdade"? pergunta definindo-se o cinismo de Pilatos. Não cria na verdade;
mas a da inocência de Cristo penetrava irresistivelmente até o fundo sinistro dessas almas, onde reina o poder absoluto das trevas. "Não acho delito a este homem",
disse o procurador romano, saindo outra vez ao meio dos judeus.
Devia estar salvo o inocente. Não estava. A opinião pública faz questão da sua vítima. Jesus tinha agitado o povo, não ali só, no território de Pilatos, mas desde
Galiléia. Ora acontecia achar-se presente em Jerusalém o tetrarca da Galiléia, Heródes Antipas, com quem estava de relações cortadas o governador da Judéia. Excelente
ocasião, para Pilatos, de lhe reaver a amizade, pondo-se, ao mesmo tempo, de boa avença com a multidão inflamada pelos príncipes dos sacerdotes. Galiléia era o forum
originis do Nazareno. Pilatos envia o réu a Heródes, lisonjeando-lhe com essa homenagem a vaidade. Desde aquele dia um e outro se fizeram amigos, de inimigos que
eram. Et facti sunt amici Herodes et Pilatus in ipsa die; nam antea inimici erant ad invicem. Assim se reconciliam os tiranos sobre os despojos da justiça.
Mas Herodes também não encontra, por onde condenar a Jesus, e o mártir volta sem sentença de Herodes a Pilatos que reitera ao povo o testemunho da intemerata pureza
do justo. Era a terceira vez que a magistratura romana a proclamava. Nullam causam invenio in homine isto ex his, in quibus eum accusatis. O clamor da turba recrudesce.
Mas Pilatos não se desdiz. Da sua boca irrompe a quarta defesa de Jesus: "Que mal fez ele? Quid enim mali fecit iste?" Cresce o conflito, acastelam-se as ondas populares.
Então o procônsul lhes pergunta ainda: "Crucificareis o vosso rei?" A resposta da multidão em grita foi o raio, que desarmou as evasivas de Herodes: "Não conhecemos
outro rei, senão César". A esta palavra o espectro de Tibério se ergueu no fundo da alma do governador da província romana. O monstro de Cáprea, traído, consumido
pela febre, crivado de úlceras, gafado da lepra, entretinha em atrocidades os seus últimos dias. Traí-lo era perder-se. Incorrer perante ele na simples suspeita
de infidelidade era morrer. O escravo de César, apavorado, cedeu, lavando as mãos em presença do povo: "Sou inocente do sangue deste justo".
E entregou-o aos crucificadores. Eis como procede a justiça, que se não compromete. A história premiou dignamente esse modelo da suprema cobardia na justiça. Foi
justamente sobre a cabeça do pusilânime que recaiu antes de tudo em perpétua infâmia o sangue do justo.
De Anás a Herodes o julgamento de Cristo é o espelho de todas as deserções da justiça, corrompida pela facções, pelos demagogos e pelos governos. A sua fraqueza,
a sua inconsciência, a sua perversão moral crucificaram o Salvador, e continuam a crucificá-lo, ainda hoje, nos impérios e nas repúblicas, de cada vez que um tribunal
sofisma, tergiversa, recua, abdica. Foi como agitador do povo e subversor das instituições que se imolou Jesus. E, de cada vez que há precisão de sacrificar um amigo
do direito, um advogado da verdade, um protetor dos indefesos, um apóstolo de idéias generosas, um confessor da lei, um educador do povo, é esse, a ordem pública,
o pretexto, que renasce, para exculpar as transações dos juízes tíbios com os interesses do poder. Todos esses acreditam, como Pôncio, salvar-se, lavando as mãos
do sangue, que vão derramar, do atentado, que vão cometer. Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação
restritiva, razão de estado, interesse supremo, como quer te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não
há salvação para o juiz covarde.

Rui Barbosa

1 comentários:

Anônimo disse...

Fala Paulão!

Parabens pelo blog e pelo artigo, tenho certeza que esse será um ponto de encontro de internautas que gostam de coisas interessantes e inteligentes. Um Abraço! Moacyr

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