26 novembro 2010

Êle viveu entre nós

Salão do Sindicato dos Cozinheiros de Paris, início da
década de 40. O presidente indaga quantos trabalhadores
tem um mes de férias por ano. Uns tantos se levantam. Quem
tem apenas uma semana de descanso. Uns poucos ficam de pé.
Quem só obtém licença do patrão para descansar apenas no
fim de semana. Outro punhado de pé. Quem nunca descansa?
Um rapaz suíço, com pouco mais de um metro e meio de
altura, levanta-se ao fundo. Era Alfredo Kunz, um
militante cristão.
Meses depois, Alfredinho, como era conhecido, foi
mobilizado pelo Exército francês para lutar contra o
avanço das tropas de Hitler. Aprisionado, passou a guerra
num campo de concentração na Áustria, ao lado de
prisioneiros soviéticos. Aprendeu russo para pregar o
Evangelho a seus companheiros de infortúnio. Em 1945,
logrou fugir do campo, onde morreram cerca de 40 mil
pessoas. Estranhou a indiferença dos soldados nazistas
que cruzavam com ele, um notório evadido, com uniforme
azul e cabeça raspada. Naquele dia, a guerra terminara.
Alfredinho tomou três decisões: tornar-se padre, trabalhar
com os mais pobres entre os pobres e jamais vestir outra
roupa que não reproduzisse o modelo do uniforme do campo,
em memória de seus companheiros mortos.
Ingressou na congregação dos Filhos da
Caridade e, a convite de dom Antônio Fragoso, em 1968 veio
para a Diocese de Crateús (CE). Perguntou ao bispo qual
era a paróquia mais miserável da diocese. Dom Fragoso apontou
Tauá, região de seca e flagelo. Alfredinho instalou-se na capela
local. Desprovida de casa paroquial, ele dormia no colchão
estendido junto ao altar e cozinhava num fogareiro.
Certa noite, foi chamado para atender uma prostituta que,
cancerosa, agonizava em seu barraco de taipa, na zona
boêmia. Antonieta queria confessar-se. Padre Alfredinho
disse a ela: "Somos nós que devemos pedir perdão a você.
Perdão pelos pecados de uma sociedade que não lhe ofereceu
outra alternativa de vida. Como Jesus prometeu, Antonieta,
você nos precederá no Reino de Deus. Interceda por nós."
Após receber a absolvição e a unção dos
enfermos, a mulher faleceu. Não havia dinheiro para o caixão. As
prostitutas enrolaram a companheira num lençol e
arrancaram a porta de madeira do barraco para levar o corpo a
vala comum do cemitério. Ao retornar para colocar a porta no
lugar, Alfredinho teve uma inspiração. Durante anos, o
vigário de Tauá habitou aquele casebre em plena zona
boêmia da cidade.
Num tempo de seca, os flagelados invadiam as cidades do
Ceará. Temerosos, muitos fechavam as portas. Alfredinho
criou a campanha da Porta Aberta ao Faminto (PAF), cartaz
que cerca de 2 mil fami1ias ostentaram em suas casas,
acolhendo as vítimas do descaso do poder público.
Fomos amigos e bebi de sua espiritualidade. Barbado,
vestido com a roupa azul que lembrava um macacão,
sandálias nos pés e mochila nas costas, o aspecto de
Alfredinho não diferia do de um mendigo. Convidado a
pregar no retiro dos franciscanos, em Campina Grande,
chegou de madrugada e dormiu na escada da igreja do convento. Ao
acordar, catou as moedas que encontrou em volta e bateu a porta.
"Quero falar com o superior", disse ao porteiro. "O
superior não pode atender. Está em retiro." Alfredinho
tentou esclarecer: "Sim, eu sei, pois vim pregar no retiro."
O porteiro já ia expulsá-lo quando Alfredinho foi reconhecido
por um frade que passava.
Testemunhei fato idêntico em Vitória, nos anos 70. A
cozinheira interrompeu meu jantar com dom João Batista da
Motta Albuquerque para comunicar: "Um mendigo insiste em
falar com o senhor." O arcebispo reagiu: "Diga a ele que
espere, minha filha. Vou atende-lo após o jantar." Era o
padre Alfredinho, que viera pregar no retiro do clero
local.
Em 1988, Alfredinho mudou-se para a Favela Lamartine, em
Santo André (SP). Passou a viver entre o povo da rua e a
dedicar-se a confraria que fundou, a Irmandade do Servo
Sofredor (Isso), hoje congregando pessoas consagradas aos
mais pobres em dez Estados do Brasil e vários países. Sua
trajetória espiritual entre os excluídos está narrada em
seus livros, muitos traduzidos no exterior: A sombra do
Nabucodonosor, A Ovelha de Urias, A Burrinha de Balaão, A Espada
de Gedeão e O Cobrador.
No domingo, 13 de agosto, Alfredinho transvivenciou,
acolhido por Aquele que era o seu caso de Amor. Deixou
como herança o testemunho de que uma Igreja afastada do
pobre é uma Igreja de costas para Jesus.

Frei Betto

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