<*Ecumenismo, uma utopia (sem lugar) à procura de um topos (lugar)*
O Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa define o verbete "ecumenismo"
como sendo (1) movimento universal de união das Igrejas Evangélicas
(protestantes). (2) O mesmo movimento estendido a todas as igrejas cristãs,
abrangendo o protestantismo, catolicismo e os diversos ritos orientais (vem
do grego *oikoumenismós*).
A palavra é composta de duas expressões gregas *hoikós* = casa / *koumene *=comum. Assim, ecumenismo nasce da utopia de que todos os seres humanos
possam "habitar uma casa comum", ou seja, compartilhar a mesma fé e
esperança espirituais. De fato, tal ideal jamais poderia ser vivenciado,
quer seja porque há uma gama muito grande de diferenças entre as culturas, e
a espiritualidade é expressão dos contornos culturais de um povo; quer seja
porque há uma natureza fragmentária nos movimentos concretos de
espiritualidade. Ao invés de caminharmos na direção da unidade, o que se
verifica na experiência religiosa é que por menor que seja um grupo, ele
tende a se dividir. São os irrefreáveis efeitos da vaidade e do orgulho, do
narcisismo que só nos permite ver como convenientes e adequadas as
manifestações intelectuais e confessionais que se assemelham às desposadas
por nós e por nosso gueto. Como disse Caetano "narciso acha feio tudo que
não é espelho".
O máximo que temos identificado é o que Francis Schaeffer chamou nos anos 70
de "cobeligerância", a capacidade de pessoas que crêem em realidades
diferentes se juntarem, momentaneamente, para lutarem contra um inimigo
comum, como a legalização do aborto ou a proibição de cultos em espaços
públicos. Este tipo de experiência não fala de identidade interna entre os
grupos, mas de uma luta (*beligere*) feita em parceria (*co*). Para isso nem
precisam ser grupos religiosos, visto que um sindicato de metalúrgicos e uma
igreja batista podem, simultaneamente, combater a presença de traficantes em
uma escola pública local. Ecumenismo é muito mais do que cobeligerância, mas
inclui este conceito.
A pergunta que se mantém no ar é a seguinte: seria o ecumenismo uma proposta
de fato conveniente para aqueles que professam fé em Jesus de Nazaré? Como
ponto de partida, convém lembrar que o desejo de unidade entre seus
discípulos é parte essencial da oração sacerdotal de Jesus, registrada no
capítulo 17 do Evangelho de João. Vejamos a expressão literal dele no
versículo 21, na qual diz que ora "para que todos sejam um, como tu, ó Pai,
o és em mim, e eu em ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo
creia que tu me enviaste." Sim, Jesus desejava que a unidade de seus
discípulos fosse um sinal visível de sua ligação com ele e com o Pai. Logo,
há no Mestre o desejo de que aqueles que crêem nele andem juntos, sirvam uns
aos outros, encarnem neste mundo caído e tenebroso "seu corpo e seu sangue".
Penso que todos os que seguem a Jesus têm esta comissão, a de andarem
juntos. Contudo, nossas diferenças doutrinárias falam mais alto que a oração
de Cristo. Uns são pela predestinação, outros pelo livre-arbítrio; uns são
sabatistas, outros guardam o domingo; uns são imersionistas, outros
aspersionistas; uns acreditam no batismo com o Espírito Santo como uma
segunda benção, outras acham que ele se dá na hora da conversão... as
diferenças são tantas que cansaríamos de enumerá-las, mas será que alguma
destas coisas é mais importante do que o desejo do Rabino da Galiléia de que
andássemos juntos? Será que até questões mais sérias, do ponto de vista
teológico, tais como crer na Doutrina da Trindade ou na suficiência da
graça, seriam motivos para não andarmos lado-a-lado na proclamação das
Boas-Novas?
A minha impressão é que o fracasso do ecumenismo está diretamente ligado ao
egocentrismo e individualismo que grassam em nosso tempo. Mesmo quando eu
olho para as religiões consideradas pagãs, vejo que há na abordagem cristã
em relação às mesmas, uma impiedade muito maior do que a que foi ensinada no
Novo Testamento. Por exemplo, Paulo quando foi evangelizar em Atenas, tomou
como ponto de partida de sua pregação um elemento do panteão grego, "o altar
ao deus desconhecido". E diz que é justamente este que ele vinha anunciar.
Claro que "o deus desconhecido" não era Jesus, era uma figura que se
inserira na tradição ritual e litúrgica grega em uma conjuntura histórica
local, mas Paulo achou que este elemento pagão poderia ser um link
interessante para a proclamação que tinha para fazer. Quantos de nós
teríamos o mesmo tino e coragem missiológica hoje?
Mas o zelo pela verdade do Evangelho não deve ser negligenciado. Não é
possível que admitamos que "todo caminho dá na venda", que toda forma de
espiritualidade leva a Deus. A verdade é que muitas formas de
espiritualidade nos afastam do Deus vivo e verdadeiro, revelado por Cristo
Jesus e trazido até nós, por obra do Espírito Santo, através dos relatos
canônicos. Algumas das mais perigosas destas espiritualidades desviantes
estão justamente entre as comunidades protestantes, cito como exemplo a
Teologia da Prosperidade e o Fundamentalismo Presbiteriano, ambas filhas do
materialismo e da arrogância da cultura norte-americana.
Creio que devemos nos limitar, de modo radical, ao que foi ensinado pelo
próprio Jesus, e isto feito de modo simples e claro. Aquilo que não foi
anunciado por Jesus não é essencial. Aquilo que ele deixou de afirmar como
caminho de salvação é, por isso mesmo, periférico. Tudo quanto eu elenquei
acima, como pontos de bifurcação da fé cristã não aparecem no ensino direto
do Salvador nos quatro evangelhos, e podem ser desposados por este ou por
aquele grupo cristão, sem qualquer prejuízo para a unidade maior peticionada
pelo Encarnado.
O que seria, então, essencial e inegociável? Sugiro sete verdades: fé na
eficiência do sacrifício expiatório de Cristo, realizado de uma vez por
todas na cruz do Calvário; consciência do amor e cuidado do Pai por todas as
criaturas (por exemplo: pelos lírios do campo, pelos passarinhos e por todos
os homens); decorrente desta consciência, a libertação de toda forma de medo
ou de ansiedade, que escravizam e retiram a capacidade de vivermos
confiantes e agradecidos no presente; ciência de nossa incapacidade de
exercer qualquer tipo de julgamento sobre os nossos irmãos, uma vez que
somos seres "travados" (com uma trave nos olhos); exigência do perdão às
ofensas de nossos irmãos contra nós, como *conditio sene qua nom* para que
fruamos o perdão do Pai em nosso favor; renúncia a toda forma de
espiritualidade "para inglês ver", de vida espiritual performática, mas um
retorno à alcova da intimidade com Deus, exclusivamente sob seus olhos;
disposição radical de nos desapegarmos de tudo que sirva de empecilho para
que sejamos porta-vozes da "reconciliação realizada", essência suprema da
Boa-Nova cristã.
Todo ser humano que seja capaz de afirmar estas sete verdades será por mim
chamado de "Meu Irmão!". Todo aquele que, por uma questão de consciência ou
de fé, não for capaz de subscrevê-las é "pródigo", que sendo filho não se
deixa amar como tal, mas que nem por isso deixa de sê-lo. A ele eu quero
procurar e buscar, para dizer-lhe que o Pai não está com raiva dele, que, em
verdade ele o ama e perdoa, que o quer em sua companhia. E quando, segundo a
operação do Consolador, alguém crer no amor e se voltar para Ele, eu quero
dançar no eterno baile dos arrependidos, para o qual eu sou continuamente
convidado.
Alguém lendo esse modesto rol de verdades da fé poderá dizer: assim é fácil
demais! Ao que eu responderia: É não! O problema nunca foi saber o que Jesus
ensinou, mas o que nós temos a dizer sobre o que Jesus ensinou. São nossas
interpretações autojustificativas que nos separam. É a água que pomos no
vinho para que se torne mais palatável, que faz do Evangelho uma sangria,
que nem é boa como o vinho, nem refrescante como a água. E assim caminha a
humanidade... explicando para complicar, expondo para encobrir e anunciando
para que ninguém conheça.
Devo confessar que não sou tão ecumênico como gostaria de ser. Parece-me que
o ecumenismo radical exige um alto grau de indiferença em relação àquilo que
crê e professa o outro. Eu não sou assim. Tenho em mim, ainda, uma fagulha
apologética que me faz indignar, não contra budistas, islâmicos e hindus,
mas contra aqueles que usando o nome de Jesus, fazem dele um déspota ou uma
marketeiro de bens de consumo; um irmão-mais-velho que se queda indiferente,
e até mesmo contente, pelo fato de ser agora o único a gozar (sem gozar) da
comunhão com o Pai.
Foi ele quem nos chamou de volta à casa do Pai, nossa casa comum; que nos
foi preparar lugar; que com um azorrague depôs do trono o usurpador
legalista e perpetuamente irado que os fariseus haviam entronizado como Deus
e fez no lugar-santo se assentar o "Pai Nosso que está nos céus".
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Martorelli Dantas
* Bacharel e mestre em Teologia e Direito. Doutorando em Filosofia do
Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor de Introdução ao
Estudo do Direito e de Direito Constitucional na Universo (Recife) e na
Faculdade Metropolitana (Jaboatão dos Guararapes – PE). Mentor da Estação da
Zona Sul do Recife do Caminho da Graça.
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