30 julho 2010

O insustentável preconceito do ser

Era o admirável mundo novo! Recém-chegada de Salvador, vinha a convite
de uma emissora de TV, para a qual já trabalhava como repórter.
Solícitos, os colegas da redação paulistana se empenhavam em promover
e indicar os melhores programas de lazer e cultura, onde eu abastecia
a alma de prazer e o intelecto de novos conhecimentos.
Era o admirável mundo civilizado! Mentes abertas com alto nível de
educação formal. No entanto, logo percebi o ruído no discurso:
- Recomendo um passeio pelo nosso "Central Park", disse um repórter.
Mas evite ir ao Ibirapuera nos domingos, porque é uma baianada só!
-Então estarei em casa, repliquei ironicamente.
-Ai, desculpa, não quis te ofender. É força de expressão. Tô falando
de um tipo de gente.
-A gente que ajudou a construir as ruas e pontes, e a levantar os
prédios da capital paulista?
-Sim, quer dizer, não! Me refiro às pessoas mal-educadas, que falam
alto e fazem "farofa" no parque.
-Desculpe, mas outro dia vi um paulistano que, silenciosamente, abriu
a janela do carro e atirou uma caixa de sapatos.
-Não me leve a mal, não tenho preconceitos contra os baianos. Aliás,
adoro a sua terra, seu jeito de falar....
De fato, percebo que não existe a intenção de magoar. São palavras ou
expressões que , de tão arraigadas, passam despercebidas, mas carregam
o flagelo do preconceito. Preconceito velado, o que é pior, porque não
mostra a cara, não se assume como tal. Difícil combater um inimigo
disfarçado.
Descobri que no Rio de Janeiro, a pecha recai sobre os "Paraíba", que,
aliás, podem ser qualquer nordestino. Com ou sem a "Cabeça chata",
outra denominação usada no Sudeste para quem nasce no Nordeste.
Na Bahia, a herança escravocrata até hoje reproduz gestos e palavras
que segregam. Já testemunhei pessoas esfregando o dedo indicador no
braço, para se referir a um negro, como se a cor do sujeito explicasse
uma atitude censurável.
Numa das conversas que tive com a jornalista Miriam Leitão, ela comentava:
-O Brasil gosta de se imaginar como uma democracia racial, mas isso é
uma ilusão. Nós temos uma marcha de carnaval, feita há 40 anos,
cantada até hoje. E ela é terrível. Os brancos nunca pensam no que
estão cantando. A letra diz o seguinte:
"O teu cabelo não nega, mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata
Mulata, quero o teu amor".
"É ofensivo", diz Miriam. Como a cor de alguém poderia contaminar,
como se fosse doença? E as pessoas nunca percebem.
A expressão "pé na cozinha", para designar a ascendência africana, é a
mais comum de todas, e também dita sem o menor constragimento. É o
retorno à mentalidade escravocrata, reproduzindo as mazelas da senzala.
O cronista Rubem Alves publicou esta semana na Folha de São Paulo um
artigo no qual ressalta:
"Palavras não são inocentes, elas são armas que os poderosos usam para
ferir e dominar os fracos. Os brancos norte-americanos inventaram a
palavra 'niger' para humilhar os negros. Criaram uma brincadeira que
tinha um versinho assim:
'Eeny, meeny, miny, moe, catch a niger by the toe'...que quer dizer,
agarre um crioulo pelo dedão do pé (aqui no Brasil, quando se quer
diminuir um negro, usa-se a palavra crioulo).
Em denúncia a esse uso ofensivo da palavra , os negros cunharam o
slogan 'black is beautiful'. Daí surgiu a linguagem politicamente
correta. A regra fundamental dessa linguagem é nunca usar uma palavra
que humilhe, discrimine ou zombe de alguém".
Será que na era Obama vão inventar "Pé na Presidência", para se
referir aos negros e mulatos americanos de hoje?
A origem social é outro fator que gera comentários tidos como
"inofensivos", mas cruéis. A Nação que deveria se orgulhar de sua
mobilidade social, é a mesma que o picha o próprio Presidente de
torneiro mecânico, semi-analfabeto. Com relação aos empregados
domésticos, já cheguei a ouvir:
- A minha "criadagem" não entra pelo elevador social !
E a complacência com relação aos chamamentos, insultos, por vezes
humilhantes, dirigidos aos homossexuais ? Os termos bicha, bichona,
frutinha, biba, "viado", maricona, boiola e uma infinidade de
apelidos, despertam risadas. Quem se importa com o potencial ofensivo?
Mulher é rainha no dia oito de março. Quando se atreve a encarar o
trânsito, e desagrada o código masculino, ouve frequentemente:
- Só podia ser mulher! Ei, dona Maria, seu lugar é no tanque!
Dependendo do tom do cabelo, demonstrações de desinformação ou falta
de inteligência, são imediatamente imputadas a um certo tipo feminino:
-Só podia ser loira!
Se a forma de administrar o próprio dinheiro é poupar muito e gastar pouco:
- Só podia ser judeu!
A mesma superficialidade em abordar as características de um povo se
aplica aos árabes. Aqui, todos eles viram turcos. Quem acumula quilos
extras é motivo de chacota do tipo: rolha de poço, polpeta, almôndega,
baleia ...
Gosto muito do provérbio bíblico, legado do Cristianismo: "O mal não é
o que entra, mas o que sai da boca do homem".
Invoco também a doutrina da Física Quântica, que confere às palavras o
poder de ratificar ou transformar a realidade. São partículas de
energia tecendo as teias do comportamento humano.
A liberdade de escolha e a tolerância das diferenças resumem o
Princípio da Igualdade, sem o qual nenhuma sociedade pode ser
Sustentável.
O preconceito nas entrelinhas é perigoso, porque , em doses
homeopáticas, reforça os estigmas e aprofunda os abismos entre os
cidadãos. Revela a ignorancia e alimenta o monstro da maldade.
Até que um dia um trabalhador perde o emprego, se torna um alcóolatra,
passa a viver nas ruas e amanhece carbonizado:
-Só podia ser mendigo!
No outro dia, o motim toma conta da prisão, a polícia invade, mata 111
detentos, e nem a canção do Caetano Veloso é capaz de comover:
-Só podia ser bandido!
Somos nós os responsáveis pela construção do ideal de civilidade aqui
em São Paulo, no Rio, na Bahia, em qualquer lugar do mundo. É a
consciência do valor de cada pessoa que eleva a raça humana e aflora o
que temos de melhor para dizer uns aos outros.
PS: Fui ao Ibirapuera num domingo e encontrei vários conterrâneos...
Rosana Jatobá
Rosana Jatobá é jornalista, graduada em Direito e Jornalismo pela
Universidade Federal da Bahia, e mestranda em gestão e tecnologias
ambientais da Universidade de São Paulo. Também apresenta a Previsão
do Tempo no Jornal Nacional, da Rede Globo.
Esse texto é parte da série de crônicas sobre Sustentabilidade publicada na CBN
(Enviado por Nicilda Holanda)

1 comentários:

Unknown on 6 de setembro de 2010 às 18:41 disse...

fantástico o comentário e o trocadilho-título do artigo. Como é difícil: a mais nova da lista: "Como a abertura da Copa pode ser em Itaquera?" ou "Você é músico, mas... você não trabalha?"

Saramagp definiria sobre esse preconceito "brando": "Somos cegos que vendo, não veÊm" (citação livre)

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